Neste momento eleitoral, muito se tem discutido sobre democracia. E não no contexto da “festa da democracia” que vem sendo, desde a reabertura, o modo como imprensa e sociedade civil tratam o momento do sufrágio, do exercício efetivo da soberania popular.
Hoje o tom é de questionamento institucional e de incertezas quanto ao processo democrático. Tanto que o discurso de posse do novo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, contendo obviedades sobre o Estado de Direito que, segundo um comentarista, em tempos normais deveriam “sair no xixi” (ou seja, passarem sem qualquer impacto), teve forte repercussão política.
Creio que os profissionais de relações governamentais devem se engajar neste debate porque para nós é ainda mais relevante a discussão. Afinal de contas, democracia é o nosso negócio. É a nossa ocupação que garante que a interação entre o setor público e o setor privado ocorra de forma eticamente correta e tecnicamente articulada, potencializando a qualidade das políticas públicas.
Para colaborar com esta troca de ideias, vamos olhar um pouco mais de perto a relação entre democracia e lobby, oportuno tema desta edição da revista “Diálogos”.
Segundo Norberto Bobbio, na teoria política contemporânea as definições de democracia tendem a se moldar por uma articulação de “regras do jogo” que devem ser observadas na vida política. Seria uma abordagem muito mais procedimental do que valorativa. Diz ele:
“Todas estas regras estabelecem como se deve chegar à decisão política e não o que decidir. Do ponto de vista do que decidir, o conjunto de regras do jogo democrático não estabelece nada, salvo a exclusão das decisões que de qualquer modo contribuiriam para tornar vãs uma ou mais regras do jogo.”
Para o que nos interessa neste artigo, vale destacar, portanto, que na democracia devem estar claras as regras para tomada de decisão política. Isto é essencial para o profissional de relações governamentais que, assim, pode ter visibilidade do terreno político, traçar estratégias e se mover de forma equânime no xadrez da defesa de interesses. É assim que garantimos, por exemplo, o nivelamento do terreno das escolhas públicas e reforçamos o princípio da impessoalidade.
Outro ponto que nos interessa diz respeito ao conteúdo das decisões políticas. Basicamente, em tais decisões qualquer conteúdo é válido, exceto aqueles que conflitem com as regras procedimentais da própria democracia.
Dito de outra maneira – qualquer decisão política que vá contra as previsões de um determinado Estado Democrático (que esteja fora das meta regras estabelecidas para alteração deste próprio regime), não deve ser tida como legítima, qualquer que sejam os valores que carrega e as ideologias que abraça.
De outro lado, por lobby pode se entender “toda atividade organizada, exercida dentro da lei e da ética, por um grupo de interesses definidos e legítimos, com o objetivo de ser ouvido pelo poder público para informá-lo e dele obter determinadas medidas, decisões, atitudes.” (Said Farhat).
Ou seja, nós, lobistas, buscamos influenciar as decisões tomadas pelos Poderes Executivo e Legislativo (e em certo sentido, dirão alguns, pelo Poder Judiciário) por meio da participação no processo de tomada de decisão política.
Não é à toa também que, na definição transcrita, se faz referência a interesses legítimos e aos limites éticos e morais dos pleitos apresentados. A publicidade é característica do lobby desde seu surgimento. O lobby não envolve negociatas, segredos, arranjos. Desde 1640, quando se apresentavam os pleitos em um vestíbulo que conectava a Casa dos Comuns ao salão central do Palácio de Westminster, até hoje, deve se dar publicidade a tais interações, guardando-se sigilo apenas do estritamente necessário (seja por legítimo interesse público ou mesmo privado – como em hipóteses de possíveis impactos concorrenciais).
Bom frisar que o lobby anda às claras não apenas para garantir à coletividade que tudo que se trata observa e visa o bem comum, mas também para que sejam preservados os agentes do governo e os particulares que com eles se relacionam. Fica-se menos suscetível a pressões indevidas quando os pleitos e suas justificativas são transmitidos à luz do dia, como acontece no exercício do lobby e de todas as relações governamentais.
Muito embora a publicidade seja necessária para garantir que a tomada de decisão política observe o interesse coletivo, ela não é suficiente. Caso não haja regras procedimentais definidas para esta tomada de decisão, como analisamos anteriormente, ela está vulnerável a toda sorte de desvios.
A existência de regras claras para que o governo realize politicamente as suas opções – sempre em prol do bem comum, como frisava Dalmo de Abreu Dallari, baseado na encíclica Pacem in Terris, do papa João XXIII – é algo a garantir um tratamento equânime para os diversos interesses defendidos perante determinado órgão ou agente.
É isso que garante que qualquer interesse (desde que legítimo) possa ser defendido, independentemente de permissão ou licença e muitas vezes ancorado – simples mas firmemente – no direito de petição.
Mais do que isso – sem democracia o custo da defesa de interesses sobe. E sobe muito. O número dos detentores do poder político é reduzido dramaticamente e a demanda por participação se mantém constante. E quando a oferta é reduzida mas a demanda se mantém, a microeconomia elementar nos diz o que invariavelmente acontece… Neste nosso caso o detentor do poder político pode facilitar ou dificultar o acesso, favorecer ou prejudicar determinada demanda, puramente com base nos benefícios por ele eventualmente obtidos, sejam eles econômicos ou não. É um cenário de dificuldades criadas para que sejam vendidas facilidades.
Mas sem lobby, também não se pode falar em democracia. Caso não seja possível o exercício da defesa de interesses por todos – bastando que (i) a causa esteja ou possa estar dentro da lei e (ii) o procedimento seja ético, não estará respeitada talvez a “regra do jogo” mais fundamental: a participação geral no processo de tomada de decisão política.
Além disso, a qualidade das políticas públicas se veria seriamente comprometida. Subtraindo-se a possibilidade de livre troca de ideias e apresentação de argumentos na interação público-privada, não teríamos mais a chance de tanto um lado quanto o outro se educarem mutuamente. Partir do princípio de que os agentes públicos dispõem de todos os dados de que precisam para tomarem a decisão política ótima é ingenuidade, desconhecimento ou pura má-fé.
Em resumo e como disse no início, a democracia é o nosso negócio e, justamente por isso, não podemos admitir qualquer negociação quanto a ela. Da mesma forma que nossa constituição reconheceu a advocacia como função essencial ao desempenho da justiça, também creio que não é exagero falar do profissional de relações governamentais como essencial à democracia.