Por Ricardo Mendes e Ricardo Sennes, diretores-executivos da Prospectiva e Alexandra Martinez, diretora de Public Affairs da Prospectiva
Com as próximas votações no México, Uruguai, República Dominicana e Venezuela, a América Latina terá completado um superciclo de eleições que já redefiniu a distribuição do poder na região. As mudanças começaram entre 2021 e 2022, quando viradas políticas no Chile, Colômbia e Brasil indicavam uma possível reedição da “onda rosa” — a ascensão ao poder de partidos de esquerda que varreu a região nos anos 2000. Candidatos de direita, porém, venceram as eleições no Equador, em 2021, na Argentina, em 2023, e no Panamá, neste 5 de maio, deixando claro que no que diz respeito a ideologias políticas, os países latino-americanos não seguem hoje a mesma toada. O surpreendente, porém, é que essas diferenças não parecem pôr freio a um fenômeno de grande impacto no trabalho de profissionais de Relações Institucionais e Governamentais (RIG) na região: a convergência na área de regulações, leis e políticas governamentais.
Independentemente da orientação política dos governos de turno, ou do nível de afinidade ideológica entre eles, a disseminação de normas e políticas setoriais entre países da região parece ter adquirido uma dinâmica própria, impulsionada pela integração das sociedades civis e instituições como o Mercosul e a Comunidade Andina (CAN), entre outras. Trata-se de um processo que, hoje, os profissionais de RIG não demoram para perceber. Uma lei, política ou regulação inovadora é adotada em um país e, rapidamente, outros começam a discutir e implementar medidas similares. Os debates públicos sobre o tema transbordam as fronteiras nacionais — e o resultado são “ondas” de novas políticas ou regulações que se espalham pela região, com um impacto significativo em alguns setores específicos.
Os exemplos são muitos. Vão desde as leis antitabaco que tomaram a América Latina partindo do Brasil e do Uruguai nos anos 2000 (incluindo as imagens de advertência em pacotes de cigarros), até as mais recentes regulações do setor de criptomoedas ou os impostos sobre bebidas açucaradas e/ou produtos ultracalóricos (adotados em países como El Salvador, Peru e Chile). Outro exemplo são as normas sobre o uso de tecnologias de Inteligência Artificial (IA): em 2023, o Peru aprovou a primeira lei geral sobre o tema e agora Argentina, Chile, México, Colômbia, Costa Rica e Uruguai discutem projetos semelhantes. Mas talvez o caso mais ilustrativo seja o da rotulagem frontal de alimentos. Pioneiro na área, o Chile implementou em 2016 um sistema no qual a embalagem de produtos industrializados precisa incluir advertências no caso de alto teor de sódio, açúcar, calorias e gorduras saturadas. Em seguida, Peru, Uruguai, Equador, Argentina e Colômbia adotaram iniciativas parecidas. Contribuiu para o impacto regional da lei chilena o ativismo do senador Guido Girardi, coautor da lei, que a promoveu em visitas por países da região (incluindo o Brasil) e entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Na Prospectiva, nos referimos a essa dinâmica de convergência normativa regional — ou de “difusão de políticas”, como preferem os cientistas políticos — como a “regionalização” da elaboração de políticas e regulações, ou, em inglês, regionality of policymaking. Nos últimos anos, temos estudado de forma sistemática esses casos e suas “forças motoras” — como indivíduos e redes regionais, formais e informais, têm interagido para impulsionar tais ondas regulatórias. Está claro que o fenômeno tem se acelerado recentemente, embora não seja novo. Na história da América Latina, há diversos exemplos de difusão tanto de medidas e estratégias econômicas mais amplas — como as reformas liberais dos anos 80 e 90 — quanto de políticas setoriais. A professora da Universidade de Columbia Maria Victoria Murillo, por exemplo, descreveu como na segunda metade do século 20 uma onda de privatizações se alastrou não só por regimes liberais, como o do chileno Augusto Pinochet, mas também por populistas associados a nacionalizações, como o Movimento Nacionalista Revolucionário na Bolívia e os peronistas na Argentina. Mais recentemente, os programas brasileiros Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida inspiraram iniciativas semelhantes por toda a região após serem elogiados por acadêmicos e entidades como a ONU e o Banco Mundial.
Em parte, essa convergência de políticas se explica pelo compartilhamento de traços culturais e socioeconômicos entre países latino-americanos. É natural que um país se inspire em soluções adotadas por um vizinho para problemas comuns. O fato de a maioria da região falar espanhol ou português também ajuda. A aceleração dos casos de difusão, porém, também se deve a uma série de outros fatores. Para começar, a América Latina tem assistido à emergência de “lacunas normativas”, em especial em setores ligados a novas tecnologias. A região está na vanguarda da inovação em áreas como energia renovável, e-commerce e indústria financeira — o que gera demanda por novas normas e políticas para regular e desenvolver esses setores.
Outro motor da difusão normativa são as redes “formais” regionais: a longa lista de organizações interestatais que atuam na região promovendo integração e harmonização regulatória. Essas redes ganharam grande impulso nos anos 1990 (com a criação do Mercosul, do Sistema de Integração da América Central/SICA e da área de livre comércio da CAN) e, mais recentemente, nos anos 2010 (com iniciativas como a Aliança do Pacífico). É verdade que algumas organizações de foco político, como a Unasul, entraram em declínio. Mas principalmente as de viés mais econômico e social continuaram a progredir no nível técnico, avançando na harmonização normativa em diversas áreas — de regras comerciais e fitossanitárias a educação, imigração, turismo e proteção ambiental. A influência dessas entidades soma-se à de bancos regionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e de organizações internacionais, como a FAO e a Organização Pan-Americana da Saúde — que tentam alinhar políticas regionais a agendas globais (por exemplo, o combate ao aquecimento global).
Além disso, a difusão normativa também é impulsionada por redes informais, que abrangem desde ativistas e líderes comunitários até políticos, acadêmicos e outros membros da sociedade civil. Muitos participam de eventos como congressos e fóruns e usam canais on-line, como redes sociais, para manter contato com seus pares e expandir suas redes de influência. Por exemplo, líderes de ONGs ou movimentos sociais costumam colaborar em pesquisas e campanhas públicas, além de trocar informações sobre estratégias que tiveram sucesso em seus países (basta lembrar a colaboração de grupos de direitos humanos para a criação de comissões da verdade na região). Figuras políticas influentes também podem individualmente trabalhar para a defesa de reformas específicas em âmbito regional, como fez Girardi.
Para departamentos de RIG de empresas que operam na América Latina, esse cenário traz uma série de novas demandas. Alguns já estão se adaptando — por exemplo, criando associações de ação regional e ajustando suas estruturas de liderança, uma vez que já não é possível tratar cada país como um mercado isolado. Mas há ainda muito a ser feito para que se possa mitigar os riscos e aproveitar as oportunidades criadas pela convergência regulatória. É crucial, por exemplo, criar estratégias de RIG integradas (issue management), que incluam um mapeamento das redes regionais que influenciam o debate e a tomada de decisões sobre temas de interesse. As empresas também precisam adaptar suas estruturas internas, garantindo o alinhamento de executivos-chave com as ações regionais. Além disso, elas podem mapear como determinado debate se desenrolou em um país para construir narrativas sólidas em outro mercado. Em alguns casos, também é possível usar informações coletadas regionalmente para aprimorar o acesso a determinados mercados. Em um momento em que ondas regulatórias avançam sobre a América Latina, quem souber se adaptar e navegar de forma eficiente essas novas dinâmicas regionais certamente chegará mais longe.