A principal atuação dos executivos de relações governamentais é defender os interesses de empresas, setores ou categorias perante a diversos atores públicos entre eles o governo. Agora, por meio da criação de um instituto dedicado à profissão, eles também se organizam para fazer o mesmo em relação ao próprio trabalho. O objetivo é diminuir o estigma que acompanha a atuação do lobista, denominação ainda vista como palavrão por muita gente.
Os planos do Instituto de Relações Governamentais (Irelgov), que será lançado oficialmente na segunda-feira, incluem produzir artigos, livros e material em português sobre a área, além de informar o público e empresas sobre o papel da profissão. “Todos os que atuam nesse setor percebem algum tipo de preconceito e se sentem pouco valorizados na própria empresa onde trabalham”, diz Kelly Aguilar, presidente do Irelgov. “Mas o lobby existe e é possível fazê-lo dentro da lei e com boas práticas. O momento do país pede isso.”
Embora esteja se desenvolvendo e passando por transformações, a área ainda tem poucas ofertas de capacitação e é considerada jovem no Brasil em comparação a outros países uma consequência da própria democracia do país estar em suas primeiras décadas. A Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) foi uma das pioneiras em promover cursos e discussões nesse sentido. Em 2007, foi criada a Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig), cuja principal bandeira é a regulamentação da profissão.
O projeto de lei mais recente que busca regulamentar a atividade do lobby no Brasil é o PL 1202, de 2007. De autoria do deputado federal Carlos Zarattini (PTSP), o projeto foca a administração pública federal, define o papel do lobista e exige prestação de contas e o cadastro dos profissionais perante órgãos públicos. Para Zarattini, o momento atual é especialmente importante para regular a relação entre o público e o privado, de onde saem hoje as principais denúncias de corrupção. “O objetivo é dar transparência a uma atividade que sabemos ser inevitável.”
O Irelgov nasce com 70 profissionais e 8 empresas associadas. “O envolvimento de uma empresa demonstra que essa área é estratégica para ela”, diz Kelly. Em sua opinião, há muita desinformação sobre o papel desse profissional até mesmo dentro das organizações. “Elas buscam alguém que faça relações governamentais e que venda para o governo. Esse executivo, porém, trabalha institucionalmente. Não é possível juntar as duas coisas.”O instituto já estabeleceu uma parceria com a escola de negócios Insper para a produção de pesquisas e estudos de caso. O Insper possui, desde 2013, um curso de curta duração sobre o tema, que tem recebido procura elevada, segundo o professor Sérgio Lazzarini. Três turmas já estão programadas para este ano. “As mudanças constantes na regulação e o aumento da intervenção na economia criam a necessidade de um profissional que faça essa ponte entre governo e empresas.”
A Fundação Getulio Vargas (FGV) vai começar neste ano um MBA em economia e gestão com ênfase em relações governamentais, com turmas em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A escola espera formar grupos de no mínimo 25 alunos para cada cidade. De acordo com uma das coordenadoras e professora do curso, Andréa Oliveira Gozetto, há uma demanda reprimida por mais capacitação, já que a maioria dos profissionais aprende a trabalhar na prática. O programa de 432 horas é voltado para aqueles que já possuam pelo menos três anos de experiência em empresas e queiram migrar para a área de relações governamentais.
Andréa conta que se surpreendeu com o alto nível hierárquico e a formação variada dos profissionais que entraram no processo seletivo. Segundo ela, uma década atrás praticamente todos que atuavam em relações governamentais eram advogados. “Hoje o perfil é mais amplo e há um movimento forte de profissionais de relações internacionais entrando na área.”
Uma pesquisa realizada pelo professor da FGV Wagner Parente, em 2013, com a participação de 98 empresas, revelou que as graduações mais recorrentes desses executivos são em direito (26%), em relações internacionais (21%), em engenharia (19%) e em economia (13%). A grande maioria (81%) começou a carreira em outras áreas para depois migrar para relações governamentais. Segundo Kelly, a profissão abriga ainda formados em comunicação e administração, e muitos possuem especialização em ciências sociais ou políticas. Também é comum que setores como o de saúde, com muitas especificidades, reúnam profissionais com formação mais técnica.
Guilherme Leser passou mais de uma década na farmacêutica MSD, até deixar a companhia para liderar uma startup em biotecnologia e voltar para a multinacional em 2013, como diretor executivo de relações
governamentais, acesso e comunicação. “No setor farmacêutico a legislação é muito importante, mas o mercado está aquecido de maneira geral para executivos com certa experiência acumulada.”
Formado em propaganda e publicidade, Leser diz ter aprendido relações governamentais na prática. “A essência do trabalho é entender o que o governo quer e precisa, compreender a estratégia da empresa e fazer a conexão entre os dois”, diz. Um dos sinais de mudança, em sua opinião, é o número cada vez maior de associações de pacientes antes comandadas por leigos ou parentes de vítimas de doenças contratando profissionais de relações governamentais.
A headhunter e sócia da empresa de recrutamento executivo Egon Zehnder, Maitée Camargo, ressalta que há uma demanda crescente por esses executivos nos últimos quatro anos, puxada por setores altamente regulados, como o farmacêutico, o de telefonia e o de agronegócio. “O perfil é variado e muitos profissionais são jovens, pois é uma carreira que vem ganhando visibilidade e não existe mais a necessidade de já ter passado pelo governo”, explica.
Na Diageo, a função de diretora de relações corporativas, hoje ocupada por Grazielle Parenti, tem peso estratégico e faz parte do ‘board’ da empresa. Atuante na área há cerca de uma década e na multinacional de bebidas há cerca de três, Grazielle é formada em administração de empresas. Ela começou a trabalhar com relações governamentais quando passou por uma gerência de marketing na qual precisava se relacionar com associações e discutir projetos de lei. Na Diageo, ela comanda uma equipe de 15 pessoas, sendo que seis se dedicam exclusivamente a esse assunto. “Existe espaço para aumentar esse quadro, mas não é fácil achar profissionais capacitados”, diz.Segundo especialistas, ao longo do tempo o executivo de relações governamentais deixou de focar apenas a regulação para atuar também como comunicador. “É preciso gostar de política, saber o que está acontecendo no mundo e entender do negócio”, afirma. Segundo ela, o trabalho também abrange contatos com associações e qualquer grupo de interesse.
A consultoria britânica de relações governamentais Speyside Corporate Relations chegou ao Brasil em 2009 e, desde 2012, a equipe passou de cinco para 16 pessoas. “Escolhemos atuar no país em razão do feedback de nosso clientes multinacionais de que as relações governamentais aqui eram baseadas em um modelo antigo, em que pessoas que saíram do governo mantêm relações pessoais com as que continuam no poder”, diz Ian Herbison, CEO da Speyside CR. De acordo com ele, esse tipo de contato é importante, mas isso vem mudando nos últimos anos. “As grandes empresas buscam análises de como a regulação impacta seus negócios e querem construir relações sistemáticas de longo prazo”, diz.
Para Kelly, do Irelgov, casos que escancaram relações ilícitas entre governo e empresas, como a operação LavaJato, devem aumentar a exigência por uma maior profissionalização da área. Ao mesmo tempo, a seleção das empresas por esse tipo de profissional será mais rígida. Na opinião de Andréa, da FGV, a existência da profissão no Brasil, de forma institucional e aberta, é em si um sinal do amadurecimento da democracia no país.
Publicado originalmente em: Valor Econômico, dia 25 de fevereiro de 2015.
Por: Letícia Arcoverde